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sábado, outubro 23, 2010

O POETA QUE ESCREVEU COM OS PÉS: PELÉ 70 ANOS







Abaixo, reproduzimos uma crônica de Nelson Rodrigues, publicada no dia 8 de março de 1958, uma semana após o jogo Santos 5 x 3 América pelo Torneio Rio-São Paulo, no Maracanã. Pelé marcou quatro gols. Pagão completou para o Santos. Alarcon, Canário e Hilton fizeram os gols do América. O texto foi extraído do livro “O berro impresso das manchetes”, com crônicas de Nelson Rodrigues publicadas na Manchete Esportiva entre 1955 e 1959. Repare bem na data do texto: 8 de março de 1958, antes da Copa da Suécia. E Nelson Rodrigues já antevia em Pelé toda a majestade que o mundo em pouco tempo iria lhe conferir.

Meu personagem da semana: Pelé

“Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: - 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Pois bem: - verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se “Imperador Jones”, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: - ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

“O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: - a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: - “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: - “Eu”. Insistiram: - “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

“Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: - “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi, até, desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta, sensacionalmente. Numa palavra: - sem passar a ninguém e sem a ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: - a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

“Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude seja, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés como uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente de que precisamos. Sim, amigos: - aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.

“Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro times entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós”.

Nelson Rodrigues


G'BALA

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