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sábado, março 17, 2012

Há 20 anos, sul-africanos brancos ratificavam nas urnas o fim do regime racista


“Você apoia o processo de reformas que o presidente começou no dia 2 de fevereiro de 1990, cujo objetivo é uma nova Constituição por meio de negociação?”. No dia 17 de março de 1992 – há exatos 20 anos, portanto — 2,8 milhões de sul-africanos brancos foram às urnas para responder a questão acima. Mais de 68% marcaram “sim” e referendaram as ações do presidente Frederik De Klerk rumo a uma nova Constituição, negociada com lideranças negras, que poria fim ao regime racista do Apartheid.
Entre os primeiros passos dados por De Klerk em 1990 estavam o fim da clandestinidade de partidos como o Congresso Nacional Africano e a liberdade de seu principal líder, Nelson Mandela. O presidente também revogou várias leis do arcabouço jurídico que sustentava o regime de segregação racial. Mas a decisão dos brancos no referendo de 1992 não partiu de uma tomada de consciência, mas falta de opção. Apenas uma minoria branca apoiava nas ruas a liberdade aos negros, e o próprio De Klerk antes de se tornar presidente não defendia o fim do Apartheid.
“Não foi uma mera concessão dos brancos aos negros. Os brancos ficaram encurralados”, conta Analúcia Danilivicz, professora de Relações Internacionais da UFRGS e pesquisadora do Cebrafrica – Centro Brasileiro de Estudos Africanos da universidade. Danilivcz, que vai publicar em breve o livro “A Revolução Sul-Africana: Revolução Social ou Libertação nacional?”, explica que a tensão na África do Sul beirava a guerra civil. “Passou a ser impossível controlar as leis de contenção dos negros. Na medida em que a crise ia aumentando, os negros levavam o caos às cidades e como resultado disto vem a repressão. Ou os brancos davam os direitos a essa maioria para que a instabilidade fosse contida, ou acabariam sucumbindo”.
Quando De Klerk assumiu o poder, em 1989, mesmo ano da queda do Muro de Berlim, a situação já era diferente. “O governo do Apartheid tinha o papel de bastião anti-comunista na região. Quando a União Soviética deixa de existir, não tem a menor relevância ter aquele grupo no poder na África do Sul. Se torna melhor para o Ocidente um governo de maioria que abra a economia do país, se adequando ao neoliberalismo. Aí o discurso dos direitos humanos vem à tona como crítica internacional ao regime”, explica Danilivcz.
O regime criado em 1948 se tornou insustentável com o aumento da tensão interna, mas também por fatores econômicos e de relações internacionais. A crise econômica que atingiu o mundo inteiro na década de 1980 não poupou a África do Sul. 
A instabilidade se agravou porque o país passou a sentir cada vez mais as sanções impostas pela comunidade internacional. Durante a Guerra Fria, ter um regime branco e capitalista encravado no sul da África fora estratégico para as potências ocidentais, na medida em que grupos de esquerda apoiados pela União Soviética tomavam o poder em países vizinhos, como Angola e Moçambique. O regime racista era fortemente militarizado, com apoio velado de potências bélicas da Europa, Estados Unidos e Israel. Assim, o regime conseguia sufocar, inclusive, grupos guerrilheiros que existiam desde os anos 1960.
O pensamento da pesquisadora da UFRGS converge com o de Pio Penna Filho, professor de Relações Internacionais da UnB. “Quando houve o referendo, os brancos sabiam que o regime já tinha acabado”, afirma o especialista em África contemporânea. Entre os antecedentes que levaram à derrocada do Apartheid, Penna cita também a conjuntura internacional com o fim da Guerra Fria e a crise econômica dos anos 1980. Ele também relata que as manifestações dos negros eram cada vez mais radicais a partir do final dos anos 1970 e durante os 80. “Os jovens negros perderam a paciência com líderes que tentavam uma conciliação”, afirma.
De fato, durante a década de 1980, atentados à bomba, por exemplo, se tornavam comuns. Ainda assim, o fim do Apartheid deu lugar à conciliação. De um lado, o Partido Nacional se deu conta de que era preciso abrir o regime para não ser engolido. De outro, líderes como Mandela aceitaram negociar. “Conta aí a sabedoria política de um grupo do Partido Nacional, liderado por De Klerk, de fazer uma transição negociada. Do outro lado, havia um grupo disposto a negociar, o CNA, e Mandela foi o fiel da balança, ele era adorado pelos negros e respeitado pelos brancos”, afirma Penna.
Para o professor da UnB, a presença de Mandela foi determinante para que o fim do regime de exclusão racial não terminasse de maneira sangrenta. “Foi um golpe de sorte terem mantido este homem vivo, um homem de sua altivez. Se não, acho que o Apartheid terminaria de outra maneira”, diz.
Analúcia Danilivicz explica que o CNA é uma organização com uma história bastante peculiar. O partido completa cem anos em 2012 e surgiu tentando negociar com os brancos. A partir de 1960, há uma inflexão rumo a guerrilha, motivada pelo Massacre de Shaperville, em que a polícia reprimiu 20 mil negros que protestavam contra a Lei do Passe, que os obrigava a portar cartões de identificação, onde estavam escritos os locais de Johanesburgo onde poderiam transitar. Sessenta e nove pessoas foram mortas a tiros e 186 ficaram feridas, entre elas mulheres e crianças. “Ali o CNA se deu conta que não ia adiantar tentar estabelecer um diálogo com o Partido Nacional”, conta a professora da UFRGS.
Ainda assim, quando seu principal líder é solto em 1990, o partido volta às origens, capitaneando a negociação para um governo em que a maioria negra fosse livre. Em 1993, enquanto tratavam da nova Constituição, Mandela e De Klerk ganharam conjuntamente o Nobel da Paz “por seu trabalho pelo fim pacífico do Apartheid e por criarem as bases de uma nova e democrática África do Sul”.
Em 1994, ocorre a primeira eleição com participação dos negros. O CNA vence com 62% dos votos, mas governa junto com o Partido Nacional, que teve 20%, em um governo de “unidade nacional”, conforme já fora estabelecido pela Constituição “interina”, de 1993 – em 1996, entra em vigor a Constituição definitiva da África do Sul pós-Apartheid. Mandela foi alçado presidente e, desde aquela eleição, o CNA sempre foi o partido mais votado, tendo atualmente Jacob Zuma à frente do governo sul-africano.
Apesar da primazia do partido que lutou pela liberdade dos negros, a exclusão social permanece, bem como o racismo. Na questão social, pesa o fato de que tudo o que era dos brancos continuou com eles. “As propriedades foram mantidas na mão dos brancos. Comenta-se que isto fez parte do acordo entre as altas lideranças”, conta Pio Penna Filho. “Foi uma conversão de eixos que levou o Partido Nacional a procurar o principais lideres do CNA e negociar uma transição para que os negros chegassem ao poder, mas os brancos não perderam sua inserção na economia. Hoje, 80% da economia está nas mãos dos brancos. A minoria branca influencia na capacidade de gestão nos três governos negros que tivemos pós-Apartheid”, afirma Analúcia Danilivicz.
“O Apartheid deixa um legado terrível de racismo e de exclusão social. Enquanto havia este regime, a renda só era distribuída entre os brancos”, explica Penna Filho. O professor da UnB pondera que, embora a desigualdade persista, muitos negros conseguiram ascender socialmente após o fim do regime racista. “Houve mudanças com a promoção de políticas públicas. Hoje já há classe média negra e negros ricos”, diz.
As relações entre brancos e negros também permanecem sendo problemáticas. Em 1995, foi estabelecida a Comissão da Verdade e da Reconciliação, que estabeleceu anistia para todos os que confessassem crimes relacionados ao Apartheid e aceitassem depor. A comissão é tida como um dos exemplos internacionais de justiça de transição, mas não há ainda uma real reconciliação no país.
“Durante 350 anos o sistema econômico sul-africano foi dominado pelos brancos. Temos 17 anos de governo de maioria negra. Em apenas duas décadas é impossível transformar totalmente um sistema fundado na exploração, na segregação e na discriminação que vigorou esse tempo todo”, opina Analúcia Danilivcz.
“Resta um racismo em grandes proporções, entre as gerações que viveram o Apartheid. A África do Sul deve superar isto em dez, vinte anos. De 1994 para cá é que crianças negras e brancas passaram a brincar juntas”, afirma Penna. “Esse regime, que vigorou durante praticamente toda a segunda metade do século XX, pode ter sido aniquilado juridicamente, mas não foi aniquilado no entendimento e nos valores das pessoas”, diz Danilivcz.
ENTENDA O APARTHEID
A África do Sul possui uma peculiaridade em relação aos demais países africanos. O país foi colonizado durante desde o século XVII por europeus de diversas nacionalidades, como alemães, holandeses e franceses. “Durante os processos de descolonização, as elites brancas na África regressaram a seus países de origem, Na África do Sul eles ficaram e constituíram uma comunidade branca permanente. Logo, eles vão se entender como brancos africanos”, explica Analúcia Danilivcz.
Arraigados ao continente africano, estes colonos, conhecidos como afrikâners ou bôeres, chegam a entrar em conflito com os ingleses pela posse da região, no final do século XIX. Ainda assim, os europeus sempre foram franca minoria populacional na África do Sul, por isto a preocupação em ter um controle estrito sobre a população negra. “Essa minoria branca, para que pudesse se manter no poder, tinha que ter um controle absoluto sobre a maioria negra e o controle chegou ao extremo quando o Apartheid foi constituído e sendo aprimorado”, relata a professora de Relações Internacionais da UFRGS.
As primeiras leis racistas são criadas no século XIX nos territórios bôeres no interior da África do Sul, onde estes sul-africanos de origem europeia se refugiaram da Coroa inglesa. A legislação dispõe que negros só têm direito a, no máximo, 7,5% das terras, e os bôeres a 92,5%.
Entre 1910 e 1961, a África do Sul possui autonomia, apesar de ainda ser subjugada aos britânicos. Já durante este período, em 1948, é criado o regime do Apartheid pelo Partido Nacional, que dá um contorno definitivo a uma série de leis de segregação que àquela altura já existiam. Os cidadãos são classificados em quatro categorias “brancos”, “nativos”, “mestiços” e “asiáticos”. Os negros (“nativos”) são obrigados a viver nos “bantustões”, territórios onde moram e só saem para trabalhar para os brancos. Os bantustões são considerados países independentes. Uma farsa para que os sul-africanos negros não tivessem qualquer direito nas leis da África do Sul branca, uma vez que não eram nem considerados cidadãos do país.
“As leis de segregação racial vêm do final do século XIX, de controle sobre a terra, sobre o trabalho. O que acontece em 1948 é uma sofisticação dessa legislação e o controle expresso sobre a população. Vêm como decorrência disso a impossibilidade do negro ser proprietário de bens, de ele transitar no país livremente. São criados os bantustões. As antigas reservas negras são transformadas em áreas independentes, isso tudo muito relativizado, claro, porque, na verdade, eles foram jogados nessas áreas. Os negros perdem a cidadania sul-africana, que na verdade nunca tiveram”, conta Analúcia Danilivcz.
Segundo a pesquisadora do Cebrafrica, o objetivo de tudo isto era, mesmo em minoria, conseguir ter o controle sobre o trabalho dos negros. “Os brancos precisavam controlar exclusivamente a força de trabalho. Os negros necessários ao trabalho iam ser incorporados aos setores de produção sem nenhum direito, tinham um salário inferior aos dos brancos que tinham a mesma atividade. E quando terminasse a jornada tinham que ir para as áreas exclusivas dos negros”.
FONTE: sul21.com / Felipe Prestes e Samir Oliveira

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