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quarta-feira, junho 06, 2012

A erva do sul













Como o mate, planta de uso tradicional indígena, se tornou símbolo de várias nações sul-americanas


Faz um domingo frio e ensolarado em Porto Alegre. O céu muito azul, depois de dias de chuva, é um convite a sair de casa. O parque da Redenção, o mais popular da capital gaúcha, está lotado. Jovens casais conduzem carrinhos de bebês. Idosos tomam sol ou leem jornal. Atletas domingueiros passam com o fôlego curto. Jovens andam de bicicleta ou sentam-se em grupos animados sobre o gramado.
A cena não seria diferente da de qualquer outro parque urbano não fosse por um detalhe. Muitos desses porto-alegrenses comungam o mesmo curioso hábito. Enquanto conversam, passeiam, tomam sol ou chamam a atenção das crianças, eles vão consumindo uma bebida quente, sorvida de recipiente côncavo chamado de cuia, com a ajuda de um canudo metálico prateado. Cada cuia é sempre compartilhada por duas ou mais pessoas. Reabastecida com água quente, ela vai sendo passada de mão em mão entre amigos de um mesmo grupo, em um ciclo que se renova repetidas vezes.
Uma semana depois, no malecón da rambla que margeia o estuário do rio da Prata na capital do Uruguai, Montevidéu, a cena se repete. Observo casais de namorados, famílias, pescadores de fim de semana, todos desfrutando de mais um domingo de sol e da mesma misteriosa bebida quente, com seus mesmíssimos instrumentos e gestos: a cuia entre as mãos, a bomba entre os lábios, a garrafa térmica debaixo do braço.
Degusta-se o mate quente ou frio, dependendo da latitude. A bebida ganha o nome de chimarrão no Brasil e de mate nos países de língua hispânica. Sua versão refrescante, com água fria, é o tereré (pronuncia-se "tererê"). O consumo do mate está tão entranhado no cotidiano do Sul do Brasil e em três vizinhos austrais - Argentina, Paraguai e Uruguai - que, às vezes, pode se tornar até assunto de Estado. Ou de segurança no trânsito. O atual presidente uruguaio, José Alberto Mujica, ameaçou, no início de seu governo, declarar guerra aos funcionários públicos flagrados usando a cuia durante o expediente. Na Argentina, um polêmico deputado propôs, no ano passado, um projeto de lei que aplicará pesadas multas a quem tomar mate enquanto dirige na província de Buenos Aires.(O caso provocou reações indignadas dos caminhoneiros. Afinal, nas rutas argentinas, os postos oferecem não só gasolina para os veículos mas também água quente para as garrafas térmicas que enchem as cuias de mate - o combustível dos motoristas.) E, em Porto Alegre, museus, como a Fundação Iberê Camargo, anunciam já na porta, em uma placa em que se vê uma cuia coberta por uma faixa oblíqua: "É proibido ‘matear' nas dependências do museu".
"A erva-mate tem efeitos digestivos e diuréticos, mas é mais consumida por ser estimulante. Tem alcaloides em sua composição, como a cafeína", explica o professor Antônio Salatino, do Departamento de Botânica da Universidade de São Paulo. A cafeína, que atua no sistema nervoso central, aumenta a capacidade de concentração e atenção, e está presente em outras bebidas, como café, chocolate e guaraná. Nenhuma delas, porém, conquistou tanto seus consumidores como a erva-mate. Afinal, ninguém sai de casa com garrafa térmica para preparar cafezinhos na rua, toma chá ao dirigir ou constrói monumentos ao guaraná - muitas cidades sulistas, contudo, erigiram estátuas oficiais à erva, esculturas em forma de cuia instaladas em parques, praças ou na confluência de avenidas importantes.
Essas efusivas manifestações de amor a uma infusão típica só fazem reforçar a pergunta: de onde vem a surpreendente paixão com que se consome o mate nesta parte da América?
Em uma fria manhã de junho, veem-se poucos carros na BR-153, rodovia que liga Bagé a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O agente Carlos Antônio de Araújo Carvalho, da Polícia Rodoviária Militar, contempla a estrada vazia entre sorvos de seu chimarrão. É um quadro em que tudo está no lugar certo: paisagem, homem, erva-mate - uma imagem perfeita do sul-rio-grandense em seu hábitat natural. Carvalho, porém, é fluminense de Volta Redonda, e está ali servindo o tempo de uma transferência temporária. O chimarrão é um hábito recente, mas fundamental.
"Tomar mate me ajudou na adaptação ao frio do sul", diz. "Também me ajudou a fazer amigos. O chimarrão tem papel importante na socialização das pessoas. Ele é um pretexto para se reunir. As pessoas se encontram, conversam em roda enquanto a cuia vai passando de mão em mão." Diante do súbito ronco da cuia, sinal de que a água acabou, ele alcança a garrafa térmica sobre o balcão e enche novamente o porongo decorado de entalhes em baixo-relevo com motivos campestres. "O mate me ajudou a me tornar um pouco mais nativo", reflete.
Outra estrada, a RS-332, corta o verde vale do Taquari, na serra gaúcha, a principal zona produtora da planta no Brasil. Por isso, também é chamada de Caminho da Erva-Mate. Nas suas margens, pequenas cidades e indústrias dependem de produção e comercialização da commodity nativa. Os ervais sucedem-se à beira da via de asfalto, mas, à primeira vista, fica difícil perceber terrenos cultivados, já que não há aparente regularidade na disposição das árvores.
De perto, a planta de erva-mate - Ilex paraguariensis, como foi classificada pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em 1822 - tem caule acinzentado e folhas ovaladas de um verdeescuro brilhante. Nos ervais, ela nunca é muito alta, pois cada árvore é podada para se manter a não mais que 3 metros de altura e facilitar a colheita periódica dos ramos. Porém, na mata, certos exemplares podem chegar a 12 metros.
As árvores nativas são o tesouro da Ervateira Putinguense, uma empresa familiar administrada há várias gerações pela família Guadagnin. Sua produção tem certificação florestal: é orgânica, sem agroquímicos, e os pés de erva-mate crescem entre outras árvores no meio da mata. "Meus pais já produziam erva-mate quando ainda se usava banha de porco no lampião para alumiar a casa", conta Eduardo Guadagnin, atual responsável pela empresa. "A cancheadeira era movida a cavalo e toda a erva passava pelo barbaquá", prossegue ele, referindo-se aos antigos fornos rústicos em que as folhas da erva-mate eram secadas - a empresa está hoje totalmente mecanizada. Guadagnin produz apenas para o mercado nacional, mas a certificação florestal de seu produto tem conseguido novos clientes fora do mercado tradicional, como a empresa de cosméticos Natura, que utiliza o extrato das folhas de erva-mate em alguns de seus produtos de beleza.
Perto dali, em Ilópolis, sente-se a influência da erva-mate até no nome da cidade. Ele deriva de ilex (a primeira palavra do nome científico da erva) e de polis (cidade, em grego). Ilópolis, cidade do mate. É tempo de comemoração no município de 5 mil habitantes descendentes de italianos, onde as poucas avenidas são divididas por jardineiras que servem de apoio para grandes cuias de mate, uma decoração permanente em homenagem a seu principal produto. Naquela noite, aconteceria a primeira aparição pública das Soberanas do Mate, as madrinhas de uma festa tradicional que ocorre a cada dois anos, sempre na primeira quinzena de novembro.
No início da noite, o interior do antigo Moinho Colognese, decorado com sacos de erva-mate e bandeiras italianas e brasileiras, já está repleto de ilopolitanos, ansiosos com a aparição de suas soberanas. Autoridades circulam entre os presentes, trocando impressões e expectativas sobre a festa. Nos cartazes e nos cartões de visita das autoridades chama a atenção o logotipo municipal: o nome Ilópolis seguido de três folhinhas de erva- mate - a primeira verde, a segunda amarela e a terceira avermelhada -, que representam as cores dos estágios de germinação pelos quais passa a semente da planta. Não por acaso, são também as cores da bandeira do Rio Grande do Sul.
Depois de longo suspense, o resultado: Viviane de Bona, de 17 anos, Gessica Provence, de 18, e Franciele Dall'Agnol, de 20 - a rainha e as duas princesas do mate em 2010 -, adentram o recinto. Trajadas em vestidos longos cuja cor homenageia o tom rubro do último estágio da semente de erva-mate e coroadas de diademas, as lindas soberanas recebem o aplauso entusiasmado dos presentes. Seguem-se os discursos das autoridades, que enfatizam o fato de que a erva representa 70% da economia municipal. "A planta é o nosso ouro verde", afirma um dos presentes.
A commodity lidera um mercado quase tão antigo quanto a chegada dos espanhóis à bacia do Prata, a partir de onde adentraram no continente. Em São Miguel das Missões, no noroeste do Rio Grande do Sul, ainda é possível escutar fantasmagóricas vozes de índios e colonizadores. E também gritos de guerra, tropéis de cavalos, algaravias de batalhas antigas entre portugueses, espanhóis e tribos indígenas. Para ouvi-los, é preciso que seja noite fechada e você se coloque diante das ruínas de uma antiga e monumental igreja. Não se trata de uma atividade paranormal: as vozes são do espetáculo Som e Luz, uma atração turística do sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, que conta a saga das missões jesuíticas no Brasil e nos países vizinhos.
No século 17, a coroa espanhola e a Igreja se opunham na defesa de dois modelos distintos de colonização para a região. O centro dessa disputa era o índio. 

De um lado os representantes da empresa colonial - soldados, comerciantes, mercadores - buscavam a conquista total da nova terra, o que incluía a escravização de todos os seus índios. 

Do outro os padres da Companhia de Jesus propunham civilizar o índio em comunidades autônomas e igualitárias, nas quais as principais atividades seriam o trabalho e a devoção a Deus. Entre 1610 e 1707, a Companhia de Jesus fundou 30 dessas comunidades - as missões jesuíticoguaranis -, espalhadas por uma área de cerca 490 mil quilômetros quadrados, território que hoje é dividido entre Brasil, Argentina e Paraguai.

As missões, também chamadas de reduções, foram os principais centros de desenvolvimento da bacia do Prata. Os jesuítas introduziram ali a pecuária, além de diversas técnicas e artes europeias, como a fundição de metais, o trabalho com o couro, a escultura e a música. E também foram os primeiros a organizar o cultivo da erva-mate.
"O mercado da erva surgiu no início do século 17, dentro do sistema de trocas da colônia espanhola", explica o arqueólogo Artur Barcelos, da Universidade Federal do Rio Grande, que participou de diversas escavações na antiga redução de São Miguel Arcanjo, cujas belas ruínas hoje integram a lista do Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade da Unesco. A erva era um hábito frequente dos índios guaranis e chegou a ser proibida pelos espanhóis no início da colonização, mas isso logo mudou com a percepção de seu valor de troca - o mate tornou-se então um importante recurso econômico. "Os missionários foram bem-sucedidos no cultivo da árvore, sabendo que o excedente de sua produção poderia ser vendido a um bom preço. Muitas reduções ficaram ricas com o comércio. A Companhia de Jesus tinha um registro bastante preciso de sua economia interna", conta Barcelos.
Graças ao intercâmbio constante dos grupos indígenas subjugados pelos espanhóis, o hábito do mate espalhou-se pela colônia, chegando até o alto Peru, às minas de prata de Potosí, na Bolívia, e ao Chile. A palavra máti, da língua quíchua, que designa a cuia, acaba batizando a planta - a erva que se toma no máti: erva-mate.
Pergunto a Barcelos por que tomar mate é algo tão arraigado nesta parte do continente. "A persistência tem a ver com o processo histórico de miscigenação. A região platina tem um passado colonial comum, e gosta de cultivar suas tradições. O mate é uma delas. É algo que nos une, um hábito público. Uma espécie de código de convívio e também um signo de identidade", diz.
Uma lenda guarani conta a história de um velho guerreiro de pernas trôpegas que, já incapaz de sair para as guerras, pescando e caçando com dificuldade, pediu a um mensageiro do deus Tupã uma solução para seus males. O mensageiro entregou-lhe o galho de uma árvore e ensinou-o a fazer uma infusão - ka'ay - que lhe devolveria suas forças. O velho combatente assim fez, recuperou o vigor perdido e divulgou a novidade entre os membros de sua tribo, os quais, passando a tomar a infusão ka'ay, se tornaram cada dia mais fortes e valentes.
Ka'ay: é assim que se chama o mate no mercado El Quatro, em Assunção, no Paraguai, onde o guarani é a língua oficial nacional, ao lado do espanhol. Uma comerciante, Amelia Galeano, tenta nos ensinar a falar mate em guarani. Mas ka'ay é uma palavra de difícil pronúncia. O problema é o ipsílon final, um som levemente gutural, que se pronuncia com a língua no céu da boca, e não existe em português nem em espanhol. Amelia vende garrafas térmicas para mate e tereré, um artigo indispensável do paraguaio. Ela tem termos especiais para mulheres, cobertos de bordados, tecidos floridos e estampados. Ou, para torcedores de futebol, com brasões dos times do Mercosul. E, para homens elegantes, revestidas de pelo de vaca macio ou de couro de alta qualidade. Há ainda garrafas térmicas para ocasiões especiais, como aniversário de namoro, casamento, o Dia das Mães, com dedicatórias gravadas como "Te quiero", "Tu eres mi cariño" ou "Felicidad, mamá!"
Assunção fica às margens do rio Paraguai, e quem cruza suas águas adentra território argentino. Se Amelia Galeano fosse vender suas garrafas na outra margem, ela certamente fracassaria. Pois os argentinos não costumam tomar seu mate na rua. São mais discretos. (Decerto porque não achem muito elegante andar com um termo a tiracolo.) Isso não quer dizer, porém, que apreciem menos o mate que seus vizinhos.
Muitas celebridades argentinas já declararam seu amor à erva-mate. Em um texto, o escritor Julio Cortázar lembra a época em que morava em Paris, e esperava com ansiedade as caixas enviadas de Buenos Aires, "cajoncitos en los que la familia nos mandaba yerba", entre outros mantimentos. Jorge Luis Borges, em um de seus poemas, elogiou o perfume que se desprende de uma cuia de mate. E o revolucionário Ernesto Che Guevara fez questão de ser fotografado inúmeras vezes com mate e bombilla entre as mãos.
Apesar de não gostarem de consumir a bebida na rua, os argentinos inventaram um jeito de tomar mate em público - os chamados bares de mate. No bairro de Palermo Viejo, em Buenos Aires, é possível ver, em um domingo, amigos em torno de uma mesa sorvendo de cuias modernas, coloridas, de alumínio anodizado a água quente suprida por chaleiras - que os argentinos chamam de pavas - do mesmo material.

O empresário Santiago Olivera é dono de três bares na capital argentina, e um dos precursores dessa nova modalidade de se tomar mate. "Tudo começou na época em que eu era universitário", diz. "Os estudantes bebem mate para virar a noite em véspera de prova e entrega de trabalhos."
É manhã de sexta-feira, e em seu bar Volviste Clara, no centro da cidade, todas as mesas estão ocupadas por grupos de alunos com livros abertos, cadernos e laptops - ao lado, é claro, de cuias de erva-mate. "É bem mais íntimo que o café. Como a cuia é compartilhada, o mate aproxima as pessoas, cria laços", explica a jovem Arantza Olagues. "O mate aconchega. É um ritual de confiança", completa seu colega Matías de Vicenzi.
Jaguarão, na fronteira entre Brasil e Uruguai, fica às margens do rio de mesmo nome. A cidade histórica, famosa por suas casas antigas, de altas portas entalhadas, platibandas e bandeiras bem preservadas, deverá ser declarada patrimônio nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) em 2011. Na margem oposta fica Rio Branco, no Uruguai. Na verdade, Jaguarão e Rio Branco são praticamente uma só cidade, cujas duas metades por acaso estão em países diferentes. Natural de Jaguarão, embora hoje more em Pelotas, o escritor Aldyr Garcia Schlee me acompanha em uma visita à região. Ele é autor de vários livros sobre as tradições sulistas e a vida na fronteira.
Sobre o rio Jaguarão estende-se a ponte internacional Mauá, com seus arcos elegantes refletidos sobre a superfície da água. Nesse domingo, há um vaivém frenético na ponte, pois Rio Branco é na verdade um enorme free shop que atrai nos fins de semana milhares de brasileiros ávidos por compras. "Aqui eles podem ir ao exterior sem sair do interior", observa Schlee com um sorriso.
Sacoleiros e turistas passam o domingo nas lojas do outro lado da fronteira, e a cidade mantém seu ritmo tradicional. A praça diante da Igreja Matriz está cheia de pequenos grupos, acompanhados de suas garrafas térmicas, tomando chimarrão. Chegamos ao cerro da Pólvora, onde se encontram as ruínas de uma antiga enfermaria militar construída em 1883. Ali, conta Schlee, será erguido o futuro Centro de Interpretação do Pampa, que deverá ser inaugurado em 2012, um grande museu dedicado às tradições pampeanas - como seu hábito de tomar mate.
FONTE: Viaje aqui Abril




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